sexta-feira, 23 de maio de 2014

Era uma vez a preguiça

Era uma vez a preguiça

Chegou por uma janela verde e se multiplicou em várias outras janelas. Avistou uma figura humana que portava na cabeça um chapéu de palha: “O homem do futuro é o homem holístico” disse o chapéu da figura humana à cabeça da janela verde “A simplicidade é um mistério muito simples”. Acordara sonhando que era a figura holística ou o futuro de chapéu esverdeado a sonhar que dormia acordado. 

Outro homem, de baixa estatura, cabelos sebosos, roupas esfarrapadas e maculadas, acompanhado de uma mulher de longas tranças usando uma tiara de moedas antigas, saia abundante e rodada; dirigiram-se ao deserto verde do chapéu marrom. Passaram pelo quarto da vestimenta artesanal: “Viemos cumprir a missão”, disseram em uníssono exibindo um baralho. A mulher pediu à figura humana ou ao seu chapéu que se aproximassem. Começou a rodar vertiginosamente no mesmo instante em que três gatos – um angorá turco, raro, com um olho azul e outro amarelo, um siamês e outro malhado, também se aproximavam.

Num olhar sábio e terno o angorá roçou-lhe as pernas ronronando palavras aparentemente ininteligíveis com as três línguas que ainda lhe restavam. “Impressiona a quantidade e a qualidade do que julgamos conseguir ou conhecer antes ou depois de nós, não”?

Os gatos olhavam para o casal verde da janela esfarrapada e para a figura de janelas humanas parecendo sorrir inutilmente para as honras da casa e os idiomas do chapéu. O persa malhado cochichou para o angorá: “Sansão, está na hora. Será que estão preparados?” Os dois felinos paralisaram ao ouvirem de uma carta a voz empastada avisando que a mesa seria servida em seguida. “Tenho minhas dúvidas de como falam as cartas. Aprendemos, mas nunca o bastante para esquecermos de novamente aprender.
O futuro é de quem pensa. Depreender é uma quimera enigmática e intransferível que a humanidade inteira se recusa a definir” – disse o herói quase acovardado após ocultar-se num  número obtuso que seria imediatamente substituído por outro número de melhor aspecto e valor. “A dor é sozinha”, repetiu antes de sumir inexpressivamente noutra soma de um sem número de indivíduos. Ou cartas.

Continuaria ousando imorredouramente enquanto esperança houvesse. “Há quem seja nessa multidão de moucos, há quem ouse em meio às vozes emudecidas, há quem chore quando já não se acredita em lágrimas, quem resista quando já não é possível (?) resistir”. As idéias ou a falta delas não seriam limites. “Talvez, um dia, se possa alcançar uma fraternidade verdadeiramente culta. Libertas Quæ Sera Tamen!”.

Esse era o seu quadrado. Liso. Deliciosamente aflitivo.Talvez a percepção seja um senhor inominável, porém reconhecível, não a qualquer um, mas à maioria senhora de um senhor qualquer, controvérsias, mal ou bem-humoradamente levadas a sério. O poder das coisas deveria atuar a favor da vida, como presentes. Aos diferentes cabe a sina de o serem, reconhecerem-se felizes, porque o normal não é de admirar embora tenha o mesmo merecimento. Ponderar porém, fica distante da beleza perspicaz com que nos brindam as margens – sustentando águas de um rio revolto, e ao mesmo tempo manso, porque é singular e inevitável o seu curso”.

Não soube até aquele ponto de onde retirara as palavras, se dos gatos, da figura verde do chapéu humano, ou da sua própria cabeça. Do lado oposto.

do livro "Entre as Águas" by Tere Tavares
foto by Tere Tavares