sexta-feira, 4 de abril de 2014

Anoitecer em Ipioca - Óleo sobre tela - 50x70cm - 2011 - Tere Tavares


Essa tela está como capa da Revista Ponto de Vista,
Acompanhada desse poema:


Cântico do Cântaro


Essa raiz de água
Esse oráculo de agora
emoldura um reino disposto ao sol e à noite
alcança um porto de melodias inolvidáveis,
as colmeias da alegria suspensas nos salgueiros
a erva sem fronteira minguando em terraços de páginas,
num soluço de semeadura, madura e abstrata,
no extremo e frio traço da manhã
ungido pela caixa acústica do mar
Tudo branco, mas não sem cor.

Do livro "A linguagem dos Pássaros" By Tere Tavares Editora Patuá 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

No ovo do novo

No ovo do novo

Um avião mergulhou no mar. À sua passagem restaram espécies irremediavelmente sucumbidas.

Eu pensei em como se tornara possível uma pista subaquática e se os tripulantes e passageiros haviam evoluído para uma respiração diferente. “Muito provavelmente”.
Disse uma voz irreconhecível vinda de Não Sei Onde.

Meus pés sentiram o solo úmido, agradável, vi o mar de outro ângulo, as ondas se arremessavam vagarosamente na areia. A praia estava repleta de pequenas aeronaves, aves ressuscitando e peixes vivendo fora da água. Todos respiravam quase à vontade naquela que parecia uma efervescente revolução biológica confusa, muito distante de chegar ao fim, como tudo, aliás.

Era um pesadelo ou um prenúncio de futuro, onde o homem trocava de lugar com os habitantes dos oceanos e rios, uma maneira de implorar-lhes perdão ou expiar as culpas, por admitir enfim que os seres aquáticos também têm alma e família.

O mesmo reconhecimento em ralação aos seres alados, os atropelados pelas malhas invisíveis não tardariam muito. Muito não tardou mesmo. Num céu delirante os sapiens-sapiens, sem protetor solar ou qualquer kit de sobrevivência, mal suportavam as asas obesas e ofegantes e sucumbiam de calor.

O sol trabalhara de forma secretamente inovadora nos últimos anos – à sorrelfa de astronautas, ciber satélites espiões, ideogramas e oráculos do I Ching, centúrias de Nostradamus e profecia Hopi.  Da Vinci não errara ao prever – “não prever é já lamentar”– que “um dia o homem teria asas e uma vez tendo experimentado voar, caminharia para sempre sobre a Terra de olhos postos no Céu, pois é para lá que tencionaria voltar.”

Os peixes aceitaram o pacto e foram morar nas casas do homem. Por benevolência – característica intrínseca dos habitantes das águas – não usariam arpões, nem redes, nem anzóis, sequer iriam pescar e viveriam somente de aspirar o ar com guelras perfeitamente adaptadas àquela novíssima forma de obter oxigênio. “Parece muito justo” disse Não Sei Onde. Quanto aos pássaros, uma nuvem gigante de nome Muito, encarregou-se de levá-los para o interior das próprias plumas e lá prosperaram felizes para sempre (?) junto aos seus filhos de algodão.


Muito também tomou para si a incumbência de cuidar de Não Sei Onde, por ter descoberto ser o seu irmão desaparecido há milênios da fronteira genealógica espacial. Muito também especulou consigo mesmo que o Céu era uma árvore inexistente e Não sei Onde, ao ler-lhe o pensamento, prontamente concordou.


Texto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
http://www.musarara.com.br/no-ovo-do-novo
Publicação no site "Musa Rara".
Imagem: Flying-Machine-Leonardo-da-Vinci-1490
Publicado também na Revista "Grito"
:http://www.revistagrito.com/#!No-ovo-do-novo/cywl/F48DE876-4898-48C1-8A22-3B37B2F778D5

terça-feira, 1 de abril de 2014

Contos publicados na Revista Diversos Afins - Dedos de Prosa III

Clemente


O sol sumia por entre as pedras entristecidas. As ondas, como enormes maços de nostalgia, esparramavam-se incansavelmente sobre a imensidão difusa da praia.

Era uma vez um desvairado pairando sobre a vastidão. Atravessou a crueza da sombra e foi ter com os rochedos. Era possível que estivesse num lugar onde provasse toda a sorte de sensações. Seu objetivo era o lado oposto. Lá encontrou ondas maiores e ameaçadoras. Alguém vendia ilusões a cinco reais.

Resolveu retornar ao lugar de onde viera. Sentia-se vigiado. Sequer se lembrava dos seus. No brilho dos finos grãos de areia, como redigidos por uma estrela de meio-dia, lia-se o motivo de cada ser que ali houvesse aportado. Seriam legíveis aos outros os passos que dava na mesma proporção que lhe eram nítidos os rastros dos outros?

O desvairado, contorcido pelas bifurcações do pensamento, almejava estar diante de outro cenário.  Mal podia conter o torpor da sua terrível ansiedade. “Deves sentir cada direção escolhida, seja como for”. Aplaudiu ao sinal como quem se agarra ao intransponível. “Terás de sentir também esses ares recém plantados, e os infinitos. Queres? Quem sabe as areias movediças? Não recomendo que te satisfaças tão rapidamente”.

Atendeu sorrindo com a febril consciência de um ponto sem ponto. Provara a todos e a si mesmo – a mente liberta o fazia sentir-se lucidamente fecundo, eufórico. O primeiro nascimento, o segundo viver, o terceiro término. Não lutou contra a canção espiralada no peito. Brincou com os seixos. Guardou alguns búzios. Não se tornaria opaco outra vez. Era como se repartisse a própria vida sobre um tabuleiro interminável, o delírio cinza e sublime – sem perceber a loucura que o acompanharia até o céu.


Conto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Imagem: Leonardo Mathias
Para leitura dos demais contos basta clicar aqui: http://diversosafins.com.br/?p=7220