sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Alguém que, com o acontecimento, sonha

Alguém que, com um acontecimento, sonha

Fico pensando
O quanto faria sem essas intermináveis cicatrizes.

Silencio-me no unguento das folhas de dente-de-leão para afagar a ferida.
Faço, do cataplasma, um prato gourmet.
Deito-me num leito estreito onde toda minha dificuldade afunda.

Escrevo porque sinto [somente a palavra me suspende]
Então consigo sumir.
Ir sumindo.

Espero que o dia passe.
Repasso a minha vontade.
O jugo de sempre, os desperdícios involuntários, os exercícios da inaptidão.

Sinto o peso de não ter peso.
Sinto vergonha e revolta.
Sinto vergonha por sentir revolta e vergonha.
Sinto que não há volta, não há retorno.

Em torno de mim a jornada se apaga com o sol posto.
A lua beija o meu sono e as estrelas consomem meu cansaço.
E esse braço, e esses sonhos todos que criei,
Não morrerão antes que as minhas mãos os afaguem.
Antes que meus olhares sejam totais.

Acredito e evito enlouquecer.
Sinto pena do que poderia ter sido.
Sinto pena do que poderia ser.
Sinto o que é.

Sinto com a proscrição, por saber que, de algum modo,
Tudo será, e tudo terá sido.
Assustadoramente belo [Como eu sem mim]
Num sem tempo [Talvez]
Noutro tempo que não esse.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Lábil ou Passagem transitória

Olhos Azuis- Aquarela 2014 By Tere Tavares


Lábil ou passagem transitória

Sinto-me uma sombra de existir, o que não comando do que fui não se repetirá – se fomos algo um para o outro será igualmente irreparável – pesam as bolhas febris por abrirem-se nos meus lábios, talvez o fruto se tenha misturado a algum sonho, do que sou para mim de incerto na incerteza de haver futuro na obrigatoriedade de mim, vendo-me cegamente na morbidez de um mar  inerte, como esse orvalho insistente que desseca os meus lábios, o que eles tinham despertado antes de apanharem o sol do meio-dia. A antemanhã que viveram agora é só uma bolha por explodir, demoradamente, para formar a ferida cuja pele hei-de retirar. Altero-me como a nuvem de breu que há pouco se derramou em mais orvalhos. Inundando a rua e as folhas sobre a muralha rosada dos lábios, as camadas que vão, em poucos dias, amarelar como propósitos mortiços a minha espera, entre entorpecimento e lucidez pairo como a chuva antes da chuva, semente antes do fruto das roseiras. Arrefeço o calor num cubo de gelo, alivio-me confusamente. Procuro o aparecimento no que ressurge sem evanescer essa tarde tépida esfumaçando-se no tremor das horas duras que me vivem ao  mesmo tempo que as pequenas grades vestidas de espumas e transparências em seus momentos de perguntarem-me porque lhes não respondo ao rompê-las, vãs, deixam-me passar como se soubessem que não sei o que será dessa liberdade alastrada que conspiro... essa abertura fosca que aplaude a minha alternativa de não saber querê-la – chamei-a de erros – enchi-me deles até esvaziar-me de irrealidades, ervas ostensivas, que medicina teriam para minhas alcovas febris neste sem fim de lábios? Que ser é tão capaz e tão fausto? De tanto tempo que julga o que o mundo tem? Dentro da minha casa há passagens exteriores, cortinas de árvores gigantes e miúdas cujo silêncio e brevidade não antevi ...horizonte fértil e diverso,  de plantas que conheci na diluição de alguém que talvez me representasse ou sucedesse diante de tantos rumos, crispam-se outros arbustos de que tenho saudade ...convergem-se as águas soltas, as araucárias e os álamos, as ramas de aliviar a febre, onde as perdi de olhar?  O jardim de rosas rubras igual ao rubor dos lábios que me doem radiantes... lírios ébrios de perfume, jasmins, amores-perfeitos que deixei de fitar mas que beijei na confluência esguia de todas as terras e todos os rios. Frutos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Uma noite inesquecível na UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL








No dia 26 de novembro de 2014 participamos, à convite do Centro Acadêmico do curso de Letras gestão “Eu Passarinho”, do I Encontro Acadêmico de Letras: Diálogos Interdisciplinares, na Universidade Federal da Fronteira Sul- UFFS -Campus Realeza, juntamente com Maria Aparecida Palma, Maria Lucia Kleinhans Pereira e Vera Fonseca, ocasião em que abordamos sobre "Mulheres Poetas e Poetizadas" como representantes da Academia Cascavelense de Letras. Esteve também compondo essa mesa-redonda a escritora realezense Marli Tereza Ost.

O grupo de escritoras foi homenageado pelo Projeto Cultural “Joaninha ou o que é?” e o Grupo de Teatro "La Broma". Os atores fizeram várias esquetes a partir dos poemas das convidadas.  Foi uma surpresa que me levou à uma emoção indizível, ao reconhecer o poema "Duo" do livro "A Linguagem dos Pássaros" entre as encenações. Houve sessão de autógrafos onde pudemos partilhar nossas obras e interagir com todo público presente. Foi um noite memorável e inesquecível.

À todos que compõem a Universidade Federal da Fronteira Sul- UFFS- Campus Realeza, Curso de Letras, diretores, professores e graduandos, nosso respeito e amizade, e o compromisso, reafirmado, na promoção, compartilhamento e difusão da Poesia e da Literatura, nosso redobrado bem-haja!

Tere Tavares

http://www.uffs.edu.br/

https://www.facebook.com/uffsonline/info?tab=overview


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Dois contos de Tere Tavares na mallarmargens | revista de poesia e arte contemporânea

Os contos publicados compõem o livro "Entre as Águas" (contos) 2011- Edição Independente.


Olhos Azuis- Aquarela- 2014 ByTere Tavares
Para leitura acesse o link abaixo:
http://www.mallarmargens.com/2014/11/2-contos-de-tere-tavares.html

Inverno Indiferente- OST- 40x32 -1994 By Tere Tavares


Obrigada Jandira Zanchi pela honrosa publicação dos contos, ilustrados com minhas pinturas. Ah! Pura alegria!
Obrigada aos leitores que me honram com a vinda e partilha.
Espalhem como pólen!

Abraço a todos!

domingo, 16 de novembro de 2014

Resenha do livro A Linguagem dos Pássaros - por Vivian de Moraes




"A linguagem dos pássaros" é o quarto livro da escritora Tere Tavares, também artista plástica, e o primeiro pela Patuá. Costurado por figuras como, obviamente, pássaros e voos, mas ainda outros temas como romãzeiras e romãs como metáforas, o amor a dois e a existência natural, o livro convida o leitor a adentrar o universo íntimo de Tere.
Em praticamente todos os poemas, sejam os longos e de sintaxe sofisticada como "cada vez mais te pertenço", seja nos curtos como "Poema de uma folha que voa", há sempre um "eu" marcado explicitamente na tessitura da trama que se faz de sons e silêncios, movimentos e suspensões, voos e pousos.
Há mesmo um poema que é em si no título: "O sorriso nasce no ventre das estrelas para tornar-se pássaro."
Uma das características poéticas de "A linguagem dos pássaros" é o alongamento dos versos no fim dos poemas, criando um ritmo um tanto esquisito, como em "Cantas como a água sobre o livro", um belo metapoema sem obviedades linguísticas:

"cultivas o pomar na alegria rota das aves
como se soubesses aferir os aniversários do tempo
carregas as drusas da melodia nas costuras das portas,
esqueces as ranhuras entre as flores
a um toque irresistível de Bach,
trazes à mão o bailado para saciar a fome do som,
e deixar somente o fragor das palavras,
arrebanhando árvores de céu, de lavra,
sobre o clamor da sombra feliz da tua morada,
linguagem de pássaros na compulsão do verso
a verdade não é nada; o que crês ser a verdade é tudo.
regressas à primavera dos invernos, trazes sóis, pois te acendem as faces, no fio luminoso que não pensa florir - é a esfera dos arcanjos voláteis que notas, porque é no ar das estrelas que surfas e descobres que és multidão, que és música à dança da alma - terra que te segue."

Como é possível notar no mesmo poema, as outras artes fazem parte do fazer poético da escritora. Em outros, ela fala em "tintas" e "claves".

Entre os poemas de amor está "Éramos a nossa pele rouca":

"Quando um pequeno cílio se abriu no meu peito
Senti, os teus olhos se enraizaram nos meus.
Aquela folha inerte sabe que há um rosto
que a deseja de outra cor.
A ficção sem corpo e sem alma
foge do olho nu - porque nada nela é inteiro.
Então eu existi porque existias comigo."

Pode ser um poema de amor, mas pode, novamente, ser metalinguagem e, nesse caso, bastante discreta e bela, uma dubiedade que torna o poema bastante belo.

Os jogos de sentido também estão presentes no livro de Tere Tavares, como em "FloRir": "E nos tons distantes dissolveu a modorra,/ o siso de viver: Flor Ir... é preciso." E o poema espelhado na outra página, "Garbo", nos derrama aos olhos e ouvidos os seguintes versos:

"E porque os seus sonhos musicais saltitavam
é que havia dança
E porque suas asas ainda não existiam
houveram girassóis
E porque seria pássaro algum dia
deixaria para sempre de ser cativo
E porque o voo é inesquecível
inscreveria a eternidade
com o crivo silencioso dos corajosos."

Parece que Tere Tavares se apropriou da capacidade de se comunicar como os pássaros, ou seja, com beleza e melodia. "A linguagem dos pássaros" é um livro conceitual, bonito e bem amarrado. Uma leitura inspiradora.

http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=273&Itemid=53


VIVIAN DE MORAES é escritora, com três livros de poesia lançados de forma independente, com tiragem de 200 cada, entre 2012 e 2013, rapidamente esgotados. São eles: “Sonetos Sombrios”, “Poemas e Canções” e “haicais/ vivian/ de moraes”. O quarto livro de poemas sairá pela Editora Patuá nos próximos meses. Jornalista não atuante, mantém dois blogs literários com resenhas de livros das editoras Patuá e Companhia das Letras, respectivamente: amuletospatua.blogspot.com e resenhascompanhia.blogspot.com, além do seu blog pessoal (viviandemoraes.blogspot.com). A autora já foi publicada por revistas como Cult, Pacheco, Samizdat, Zunái, Gente de Palavra e Mallarmargens. Seu próximo projeto é a edição eletrônica da Revista Nefelibata, cujo primeiro número deverá ir ao ar até janeiro de 2015.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Minha participação na Revista Mallarmargens

A artista plástica e poeta, Tere Tavares, em mallarmargens:

Alguns poemas que constam do meu livro "A Linguagem dos Pássaros" Editora Patuá, 2014, publicados na Revista Mallarmargens, Grata, Jandira Zanchi pela edição. 
Espero que apreciem, curtam, espalhem como pólen!


mallarmargens revista de poesia & arte contemporânea:



A todos um bem-haja!


PS: O livro encontra-se à venda no Catálago da Editora Patuá!!!

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Cantas como a água sobre o livro

Pássaros ao sol By Tere Tavares


Cantas como a água sobre o livro

cultivas o pomar na alegria rota das aves,
como se soubesses aferir os aniversários do tempo.

carregas as drusas da melodia nas costuras das portas
esqueces as ranhuras entre as flores
a um toque irresistível de Bach.
trazes à mão o bailado para saciar a fome do som,
e deixar somente o fragor das palavras,
arrebanhando árvores de céu, de lavra,
sobre o clamor da sombra feliz da tua morada.
[linguagem de pássaros na compulsão do verso
a verdade não é nada ; o que crês ser a verdade é tudo.
regressas à primavera dos invernos, trazes sóis
[ pois te acendem as faces
[no fio luminoso que não pensa florir
[– é a esfera dos arcanjos voláteis que notas,
[ porque é no ar das estrelas que surfas,
[e descobres que és multidão
[ que és música à dança da alma – terra que te segue.
Do livro "A Linguagem dos Pássaros" Tere Tavares, Editora Patuá poesia 2014
Pintura: "Pássaros ao sol" 2014
pela autora Tere Tavares

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Duo




Duo


Não um passo, um pássaro
Que se apaixona pela paixão
E quer, seja deus ou homem,
Saber mais do que simplesmente aparenta.
Não o ar, o arrepio.
Pele que não se repele.
Não um aviso, um vazio.
Quadros subscritos na decorrência fria do tempo.
Sou descoberta e verto o sangue branco da minha não presença.
Enquanto infalível é a flecha
A mover-se como asa refletida em nuvens e rodopios invisíveis.

Comprei papel para desenhar e na minha mão interrompeu-se um horizonte.
Nesse cárcere a que chamam de corpo a alma sem braços se dispersa.
O zunir da janela revela a desenvoltura dos telhados
O movimento se abranda no bradar dos ventos, se refugia
[nas frestas das ondas.

Já não ouço os pensamentos.
Beijo em tudo a saudade dos filhos e da casa.
Transformo palavras em lírios, moldadas à água de uma
[fonte infinita – abrigam-se em mim, ao viés do meu corpo
[ como halos a rescindir o sol que se esparrama sobre um núcleo de arbustos estelares,
[que jamais deixarão de ter-me
                      [– ramos de ternura, voz que me dá silêncios.

Do livro "A Linguagem dos Pássaros" Tere Tavares (poesia 2014 Editora Patuá, SP)
Foto da autora Tere Tavares

sábado, 11 de outubro de 2014

Carta sem distinatário

Teatro



Carta sem destinatário

A alma se liquefaz com sua força imensa; nem por isso menos insegura. Animou-se por estar diante de um incalculável delírio. Inconsequente, porém lícito. Não se fixaria num prumo de onde sobreviessem más idéias.

As nuvens dançavam por entre as frases que encontrava com a benevolência contínua do calor. Dissoluto, passou por uma livraria. Sem tempo para entrar observou à distância as preguiçosas pilhas de livros suspirando na vitrine. Imaginou a última indolência no folhear de uma obra. “A alma pergunta e o livro fala.” Os motivos eram silêncios ensurdecidos.

“Tão incomunicável é o pensamento mesmo entre coisas muito próximas” – expressou-lhe algo notadamente melancólico, mas de sorriso tão amável quanto às sementes mais fecundas. “Às vezes uma mentira salvadora é mais nobre que uma impiedosa verdade.” Fechou-se junto a essa dubiedade, numa política suntuosamente fiel.

Assentiu a um aceno apenas por polidez. Sentia-se pouco à vontade diante de estranhos. Era de seu único interesse o que sentia ou imaginava sentir. “A dúvida não se ampara em acasos.”

Voltou a refletir sobre os aspectos daquele repentino remorso – única herança obtida entre um e outro chiste daquele dia onde muitas promessas se quebraram – mais fugaz que um instante e talvez por isso com estruturas tão indeléveis, como o sal angustiado do vazio que se seguiria, ou a veemência de que não ressuscitasse nada – rugas de uma jornada irrepartível de menos de uma hora. O tempo sabe ser cruelmente profético e inteligentemente arrebatador.

Adorava estar solto, tão inóspita era a verdade onde se dispunha a caber. Como se nas lágrimas atenuasse a secura da voz, madrugava em reminiscências bondosas, refugiando-se na possibilidade, ainda que remota, de mais algumas revelações felizes. 

Do livro "Entre as Águas" 2011 by Tere Tavares

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

domingo, 5 de outubro de 2014

Meiguice

 "Meiga" -Têmpera sobre papel - 1975 - By Tere Tavares

Meiguice


Os teus olhos me dizem que estás perdida
Naqueles olhos que ainda não viste
Que ainda não te vestem
Com olhares de te haverem visto.


Poema by Tere Tavares

terça-feira, 2 de setembro de 2014

"A linguagem dos Pássaros" ...na imprensa



Vários veículos de comunicação estão a publicar matéria sobre o meu novo livro de poemas
"A linguagem dos Pássaros". Meu muito obrigada a todos.
Lembrando que o livro pode ser adquirido no catálogo da Editora Patuá, SP aqui:
www.editorapatua.com.br


Livro "A linguagem dos pássaros", da escritora Tere Tavares, é publicado pela Editora Patuá.
Jornal PatoB JornalOnline:
http://www.patob.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=13607&Itemid=1


Jornal "O Paraná":
Tere Tavares lança livro de poemas
Sala Verde é palco para o lançamento de "A linguagem dos pássaros"
Portal do Município de Cascavel, PR:

Jornal Hoje de Cascavel, PR

sábado, 23 de agosto de 2014

A Linguagem dos Pássaros

"A Linguagem dos Pássaros"

                             Novo livro de poemas de Tere Tavares, com capa e projeto gráfico de Leonardo MAthias e edição de Eduardo Lacerda, publicado pela Editora Patuá, SP.


Saiba mais sobre a autora e o livro em:
http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=273


Convite:


O Lançamento será dia 05 de setembro a partir das 19 horas, na Biblioteca Pública Sandálio dos Santos - Paço das Artes- à Rua Paraná, 2786, Cascavel, PR, juntamente com a abertura da exposição de poemas ilustrados "Parcerias poéticas IX" da Academia Cascavelense de Letras.
Contamos com a honrosa presença de todos.


O livro pode ser adquirido no catálogo da Editora Patuá através do site  http://www.editorapatua.com.br/

domingo, 6 de julho de 2014

E foram rasgadas as leis

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                          Auguste Renoir - Girlhood - Drawin

E foram rasgadas as leis
que sobre nós não absorveram
a mensagem truncada afirmando
que os incensos haviam se multiplicado
e aprendido a comover os reis e os réus
nossos olhos veriam a felicidade
derramando-se nos cântaros infinitos
quando, por fim, já não seriam necessários
nossos ombros -
somente as alianças emolduradas dentro dos livros
por escrever. De coração e alma limpos.


Poema by Tere Tavares

terça-feira, 17 de junho de 2014

Sem pena de ter

"Mulher Lendo" 1874- Pierre Auguste Renoir


Sem pena de ter


A Igreja tinha um cheiro de antiguidades. Um balcão repleto de livros cobertos de pó obstruía o corredor. Algumas abelhas se distraiam pousando em velhas imagens que rodeavam as paredes. O rapaz passou as mãos de leve nos pés quebrados de um Santo Antonio. Uma lástima deparar-se com tudo naquele estado. Ele também tocou os bancos de jacarandá. Sentou-se.

Tanta atenção lhe despertava o lugar que quase esquecia o que o levara até ali.
A moça da rua de ontem. Como não atender-lhe as dúvidas, esquecer-lhe o tom suplicante?
Daria cabo do seu egoísmo cumprindo a promessa. Antes rezaria pelos mortos com a mesma devoção que o faria para os vivos. Pediria pelo fim da angústia dita esperar, da enfermidade nominada crer, e tudo o mais que lembrasse as tristes ilusões do mundo. Pediria perdão pelo que pedisse e pelo que pensasse.

Naquela manhã de Maio morrera a morte do seu olhar na moça da rua de ontem. O assíduo assédio daquela alma se estendia sobre o silêncio daquele cenário gasto. A manhã de Maio era ali, com ele, ajoelhado, mentindo qualquer escrúpulo, revelando ocos de fora e de dentro. O resto era medo que o deixava na margem lúcida de próximas águas. O repasto, a moça da rua de ontem.

Vestia a viva ânsia de sair o mais depressa dali e levar-lhe o que a cobriria como a uma rainha. A sua. A imagem de ouro de Santa Rita. Um pé na escadaria e outro na rua. Voltou. Queria também os livros para salvar o amor no amanhecer e no poente.

do livro "Meus Outros" 2007 by Tere Tavares

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Era uma vez a preguiça

Era uma vez a preguiça

Chegou por uma janela verde e se multiplicou em várias outras janelas. Avistou uma figura humana que portava na cabeça um chapéu de palha: “O homem do futuro é o homem holístico” disse o chapéu da figura humana à cabeça da janela verde “A simplicidade é um mistério muito simples”. Acordara sonhando que era a figura holística ou o futuro de chapéu esverdeado a sonhar que dormia acordado. 

Outro homem, de baixa estatura, cabelos sebosos, roupas esfarrapadas e maculadas, acompanhado de uma mulher de longas tranças usando uma tiara de moedas antigas, saia abundante e rodada; dirigiram-se ao deserto verde do chapéu marrom. Passaram pelo quarto da vestimenta artesanal: “Viemos cumprir a missão”, disseram em uníssono exibindo um baralho. A mulher pediu à figura humana ou ao seu chapéu que se aproximassem. Começou a rodar vertiginosamente no mesmo instante em que três gatos – um angorá turco, raro, com um olho azul e outro amarelo, um siamês e outro malhado, também se aproximavam.

Num olhar sábio e terno o angorá roçou-lhe as pernas ronronando palavras aparentemente ininteligíveis com as três línguas que ainda lhe restavam. “Impressiona a quantidade e a qualidade do que julgamos conseguir ou conhecer antes ou depois de nós, não”?

Os gatos olhavam para o casal verde da janela esfarrapada e para a figura de janelas humanas parecendo sorrir inutilmente para as honras da casa e os idiomas do chapéu. O persa malhado cochichou para o angorá: “Sansão, está na hora. Será que estão preparados?” Os dois felinos paralisaram ao ouvirem de uma carta a voz empastada avisando que a mesa seria servida em seguida. “Tenho minhas dúvidas de como falam as cartas. Aprendemos, mas nunca o bastante para esquecermos de novamente aprender.
O futuro é de quem pensa. Depreender é uma quimera enigmática e intransferível que a humanidade inteira se recusa a definir” – disse o herói quase acovardado após ocultar-se num  número obtuso que seria imediatamente substituído por outro número de melhor aspecto e valor. “A dor é sozinha”, repetiu antes de sumir inexpressivamente noutra soma de um sem número de indivíduos. Ou cartas.

Continuaria ousando imorredouramente enquanto esperança houvesse. “Há quem seja nessa multidão de moucos, há quem ouse em meio às vozes emudecidas, há quem chore quando já não se acredita em lágrimas, quem resista quando já não é possível (?) resistir”. As idéias ou a falta delas não seriam limites. “Talvez, um dia, se possa alcançar uma fraternidade verdadeiramente culta. Libertas Quæ Sera Tamen!”.

Esse era o seu quadrado. Liso. Deliciosamente aflitivo.Talvez a percepção seja um senhor inominável, porém reconhecível, não a qualquer um, mas à maioria senhora de um senhor qualquer, controvérsias, mal ou bem-humoradamente levadas a sério. O poder das coisas deveria atuar a favor da vida, como presentes. Aos diferentes cabe a sina de o serem, reconhecerem-se felizes, porque o normal não é de admirar embora tenha o mesmo merecimento. Ponderar porém, fica distante da beleza perspicaz com que nos brindam as margens – sustentando águas de um rio revolto, e ao mesmo tempo manso, porque é singular e inevitável o seu curso”.

Não soube até aquele ponto de onde retirara as palavras, se dos gatos, da figura verde do chapéu humano, ou da sua própria cabeça. Do lado oposto.

do livro "Entre as Águas" by Tere Tavares
foto by Tere Tavares



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Anoitecer em Ipioca - Óleo sobre tela - 50x70cm - 2011 - Tere Tavares


Essa tela está como capa da Revista Ponto de Vista,
Acompanhada desse poema:


Cântico do Cântaro


Essa raiz de água
Esse oráculo de agora
emoldura um reino disposto ao sol e à noite
alcança um porto de melodias inolvidáveis,
as colmeias da alegria suspensas nos salgueiros
a erva sem fronteira minguando em terraços de páginas,
num soluço de semeadura, madura e abstrata,
no extremo e frio traço da manhã
ungido pela caixa acústica do mar
Tudo branco, mas não sem cor.

Do livro "A linguagem dos Pássaros" By Tere Tavares Editora Patuá 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

No ovo do novo

No ovo do novo

Um avião mergulhou no mar. À sua passagem restaram espécies irremediavelmente sucumbidas.

Eu pensei em como se tornara possível uma pista subaquática e se os tripulantes e passageiros haviam evoluído para uma respiração diferente. “Muito provavelmente”.
Disse uma voz irreconhecível vinda de Não Sei Onde.

Meus pés sentiram o solo úmido, agradável, vi o mar de outro ângulo, as ondas se arremessavam vagarosamente na areia. A praia estava repleta de pequenas aeronaves, aves ressuscitando e peixes vivendo fora da água. Todos respiravam quase à vontade naquela que parecia uma efervescente revolução biológica confusa, muito distante de chegar ao fim, como tudo, aliás.

Era um pesadelo ou um prenúncio de futuro, onde o homem trocava de lugar com os habitantes dos oceanos e rios, uma maneira de implorar-lhes perdão ou expiar as culpas, por admitir enfim que os seres aquáticos também têm alma e família.

O mesmo reconhecimento em ralação aos seres alados, os atropelados pelas malhas invisíveis não tardariam muito. Muito não tardou mesmo. Num céu delirante os sapiens-sapiens, sem protetor solar ou qualquer kit de sobrevivência, mal suportavam as asas obesas e ofegantes e sucumbiam de calor.

O sol trabalhara de forma secretamente inovadora nos últimos anos – à sorrelfa de astronautas, ciber satélites espiões, ideogramas e oráculos do I Ching, centúrias de Nostradamus e profecia Hopi.  Da Vinci não errara ao prever – “não prever é já lamentar”– que “um dia o homem teria asas e uma vez tendo experimentado voar, caminharia para sempre sobre a Terra de olhos postos no Céu, pois é para lá que tencionaria voltar.”

Os peixes aceitaram o pacto e foram morar nas casas do homem. Por benevolência – característica intrínseca dos habitantes das águas – não usariam arpões, nem redes, nem anzóis, sequer iriam pescar e viveriam somente de aspirar o ar com guelras perfeitamente adaptadas àquela novíssima forma de obter oxigênio. “Parece muito justo” disse Não Sei Onde. Quanto aos pássaros, uma nuvem gigante de nome Muito, encarregou-se de levá-los para o interior das próprias plumas e lá prosperaram felizes para sempre (?) junto aos seus filhos de algodão.


Muito também tomou para si a incumbência de cuidar de Não Sei Onde, por ter descoberto ser o seu irmão desaparecido há milênios da fronteira genealógica espacial. Muito também especulou consigo mesmo que o Céu era uma árvore inexistente e Não sei Onde, ao ler-lhe o pensamento, prontamente concordou.


Texto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
http://www.musarara.com.br/no-ovo-do-novo
Publicação no site "Musa Rara".
Imagem: Flying-Machine-Leonardo-da-Vinci-1490
Publicado também na Revista "Grito"
:http://www.revistagrito.com/#!No-ovo-do-novo/cywl/F48DE876-4898-48C1-8A22-3B37B2F778D5

terça-feira, 1 de abril de 2014

Contos publicados na Revista Diversos Afins - Dedos de Prosa III

Clemente


O sol sumia por entre as pedras entristecidas. As ondas, como enormes maços de nostalgia, esparramavam-se incansavelmente sobre a imensidão difusa da praia.

Era uma vez um desvairado pairando sobre a vastidão. Atravessou a crueza da sombra e foi ter com os rochedos. Era possível que estivesse num lugar onde provasse toda a sorte de sensações. Seu objetivo era o lado oposto. Lá encontrou ondas maiores e ameaçadoras. Alguém vendia ilusões a cinco reais.

Resolveu retornar ao lugar de onde viera. Sentia-se vigiado. Sequer se lembrava dos seus. No brilho dos finos grãos de areia, como redigidos por uma estrela de meio-dia, lia-se o motivo de cada ser que ali houvesse aportado. Seriam legíveis aos outros os passos que dava na mesma proporção que lhe eram nítidos os rastros dos outros?

O desvairado, contorcido pelas bifurcações do pensamento, almejava estar diante de outro cenário.  Mal podia conter o torpor da sua terrível ansiedade. “Deves sentir cada direção escolhida, seja como for”. Aplaudiu ao sinal como quem se agarra ao intransponível. “Terás de sentir também esses ares recém plantados, e os infinitos. Queres? Quem sabe as areias movediças? Não recomendo que te satisfaças tão rapidamente”.

Atendeu sorrindo com a febril consciência de um ponto sem ponto. Provara a todos e a si mesmo – a mente liberta o fazia sentir-se lucidamente fecundo, eufórico. O primeiro nascimento, o segundo viver, o terceiro término. Não lutou contra a canção espiralada no peito. Brincou com os seixos. Guardou alguns búzios. Não se tornaria opaco outra vez. Era como se repartisse a própria vida sobre um tabuleiro interminável, o delírio cinza e sublime – sem perceber a loucura que o acompanharia até o céu.


Conto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Imagem: Leonardo Mathias
Para leitura dos demais contos basta clicar aqui: http://diversosafins.com.br/?p=7220

quinta-feira, 20 de março de 2014

À moda de Iara


À moda de Iara


"É difícil se abrir, mas quem disse que é fácil encontrar alguém que escute?" (Cecília Meireles)

Despretensiosamente, dava campo ao ímpar redesenho do efêmero – a linha da transitoriedade – algo em que é possível crer, um sim contínuo para demorar-se no reanimar dos espelhos, reconhecer-se e novamente navegar a existência – quando desapropriada de si fosse toda gente, e todo “eu”.

Haveria como não pensar? Luzir sem verter? Embriagar-se de índoles e indulgências onde construções e intuições fossem capazes de mostrar sem exibir, onde não se relegasse o ritmo ao vazio, com tantas estranhezas quanto há estrelas no céu?

Solitariamente perambula em águas incômodas, tiaras de aguapés. Não quer ser apenas técnica ou sentimentos com o propósito de se tornarem egoisticamente inesquecíveis,  grafismos inelutáveis dados ao tropel dos ventos, qual oblações irrefletidas cujos desígnios nada comandam.

Agora é quase uma auréola a confessar-se surpresa com o descanso de ocasos fugidios, a dúvida e a ineficácia da culpa – quiçá uma fórmula de driblar o confronto e a verdade.

Que fosse algures enfático... se deslindaria em consentimentos – quem não parte ou nunca diz adeus, que assassino não se diz repetidamente inocente?

A veste desnuda imita o amor quando não escolhe formas ou defensores. Há que vivê-lo somente, imperfeito, com a lucidez habilidosa da escuridão, como se nada restasse – nem os personagens.

Silhueta altiva, Iara, como a urgência das macieiras, rotunda, serva de igarapés e ninféias, quase igapó, como se acreditasse ou soubesse de antemão todos os segredos e ainda assim afirmar multiplicar-se – entre experimentar e adquirir – um rio obsequente.

Mestres sabem calar... segregou o leito dos veios às manobras das falésias.
A menos metade é agora uma necessidade irreprimivelmente líquida, socorrendo os sentidos com uma sinceridade oblíqua. “Quando eu vier não ouvirei além do que me interessa.”

O sol se estendia na finura da chuva que assomava correntes maiores, como um vício de verbos extasiados no olho dos fios de água. ”Não os posso ver abandonados. É como se ao retomá-los me retomasse num fulcro inolvidável.” Quanto às pedras, se pensavam ou ouviam vozes – não eram diamantes e não soavam falsas em nada.

Reconhecera a fluência do que lhe correspondia. Sem sumir, ou obscurecer. Sem objetivar ou premeditar. Na claridade obstinada que doava, obtinha das faces dos olhos o curso das águas que, fatalmente, se aglomeram no mar.

do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Imagem by Tere Tavares

segunda-feira, 10 de março de 2014

In-Crível

 Guerra e Paz - Cândido Portinari - entre 1952 e 1956.
In-Crível

Após essa festa virá outra festa,
em campos verdes!
Verdes e caros e lindos.
E depois da festa dos campos,
virá a fresta do escrutínio.
O engano.
E nos sobrará a única coisa
que Pandora
não deixou escapar da sua caixa.

Poema By Tere Tavares publicado na Revista Ponto de Vista.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Auto




Auto
...a alma de neve e os livros ausentes de surpresa ou de orvalho, um poema, a luz do sol, Ah, se desejasse ultrapassá-la de forma que não mais fosse preciso representar o incontestável receio das elipses numa harmonia que só a natureza entregue a si mesma é capaz de executar, o último segundo em que coubesse, a hora de pôr-se a caminho e lutar por cada sopro de ar rodeado do que não se reteria sem angústia a labareda dos álamos avermelhados e o azul que se partia lívido, a nesga de outono e a folha rubi, amaria olhar, tinha certeza, diria que morreria do seu sim diria o que de si é se dissolvendo num contorno fugaz ao menos diria mais enquanto o rebulir das cigarras iniciasse a varrer o dia e a terra se encarregasse da próxima lágrima, o nada que seria ao mundo que de nada o revestiria quando fosse sedutor o bastante para prover o pensamento tão incomunicável quanto é verdade o que pensa, o começo, como apagar a vertigem do nunca do cão astuto, o segundo no escuro de haver a roupa simples de uma pessoa chata chegando à porta do primeiro andar, a bela do mosaico e um dia alto de trabalho num vestido chanell e um papel amassado para preencher saltos baixos em que o ócio não coube não o impediriam de atravessar, seria aquela noite mesmo que tivesse só os ladrilhos arrumou o nó do mosaico a gravata só tinha lugar para uma pedrinha de bem e outra de mal haveria chaves na porta o ócio não seria o sopro de vestido chanell nem o dia de trabalho o beijo de tafetá que amarrotou nos papéis a risca de giz ou o trabalho a roupa difícil de usar um formulário azul-marinho de sentimento indissociável e talvez nem lhe sobrasse o virtuoso ladrilho que absorveu o mosaico e entrou na angústia brilhante e sem saída a extravagância não é feita para ser usada por alguém elegante ou sério ...a elegância talvez fosse o ladrilho ou a moça uma angústia de seda e champagne a nova pedra o cenário de rubi a risca do não rodeava outro vestido petit poá ...nem o acerto incomum queria um celular que talvez nem viesse a usar exceto para remediar uma desculpa qualquer como um dia exaustivo de trabalho e um limite para pensar em como digerir o ladrilho rubi e a rua da presença que desaparecia num brilhante e ressuscitava num vestido de pedra ou numa mente de papéis o sopro dogmático não seguiu, não importava a camisa de festa ...a festa não era a roupa nem o equilíbrio o encontro que tem por destino nenhum destino nem o papel a amargura redonda e profana que sorrindo sustentou a coragem de adormecer e beijar o incomum num dia monolítico vestido de trabalho e probabilidades, a velha pedra de metal exeqüível na divina elegância daquela noite de vinte minutos a festa aconteceria quando ousasse e atravessasse com piedade e sem dó todas as pedras preciosas ao som de piano, que não chorasse a Sonata ao luar...noutra rua.

Texto do livro "Entre as Águas" BY Tere Tavares
Foto by Tere Tavares

domingo, 5 de janeiro de 2014

Porque o amor era profundo e a luz era cheia


  • Atravessou o dia sem que o tumulto o ferisse. Quando venceu a última alameda reforçou a certeza de haver forjado algo mais que uma simples defesa. Fosse de si mesmo, fosse dos grupos que, invariavelmente, se postavam num ponto qualquer do trajeto quiçá para arrebanhar futuros furtos ou consumidores potenciais de mercadorias ilícitas – novas vítimas.

    Tinha o resto da tarde livre. Passou pelo portão eletrônico. Desceu do carro, ligou os alarmes. Acelerou os passos para entrar em casa. Sentia-se protegido ali no seu pequeno símbolo de bem estar, ainda que angustiosamente.

    Ao chegar à sala viu-a no alto da escada, ignorava se frustrada ou feliz. Parecia calma e convidativa. Diferente dos outros dias, não indagou “porque veio mais cedo hoje”. As cortinas estavam semi-abertas e ainda filtravam das janelas os apegos diurnos.

    Ela sentou em silêncio no último degrau. Descalça, descansada. O emprego se fora há dois meses. Não suportou a idéia de que lhe dissessem sempre o que abordar, quando e o que compor – coisas a que nenhuma criatividade, por mais versátil que seja, deixa de sucumbir. Faria o curso tão sonhado com a bolsa de estudos que conquistara com tanto esforço. Já dominava um terceiro idioma. Finalmente o antigo projeto redesenhava-se. Ainda não lhe dissera sobre isso. Ultimamente seu interior parecia maior e mais intransponível do que qualquer outro lugar.

    Olhou-o como se não o visse há muito tempo. Os cabelos lisos e bem cortados. O corpo bem feito, jovem como o seu. Com sonhos? Era distante a última vez em que se lembrava haver lhe dito que o amava. A recíproca não era verdadeira.

    “Estou aqui imaginando qual a melhor forma de te tocar”, inclinou-se segurando o violino numa fatigada esperança. Nem menos árduo nem menos belo do que sempre fora. Ela pousou a cabeça no seu braço. Sentiu o calor suave da sua presença. Havia algo nele que a iluminava. E ele sabia. Como se ela fosse todas as estrelas e o sol.

    Para uma luz que acalenta outra luz nem mesmo o silêncio da música que anseia nascer parecerá opaco. Entre um perfil e uma face há bem mais que um simples testemunho. Não era preciso quebrar o encanto daquela plenitude com nenhuma palavra ou gesto.

    Ele não resistiu. “Eu sempre soube quando partias.” Escutou-o sem nenhum sobressalto. Ela balbuciou tepidamente a única dignidade que imaginava restar-lhe para calar o vazio que viria em seguida. “Nunca o fiz sem levar-te comigo.”

    Texto do livro "Entre as Águas" (2011)
    Foto by Tere Tavares.