sábado, 7 de setembro de 2013

A Cuidadora de Fontes


A Cuidadora de Fontes

Mostrou o olhar como a orla de uma partitura, tornou a guardá-lo sobre as pálpebras. Semeava-se fragilmente num ondular castanho, como se beijasse seixos marinhos. Seu destino chegara às areias flagrantes que a observavam. As linhas à mostra. Insistentes. Teimosas.

Histórias não contadas lhe serviam estrelas de alquimia aprimoradas a cada cerzimento disseminado pelo espírito inquieto – eram tão perpetuados aqueles poucos raios de luz a balbuciarem o desejo por mais luz.

A investigadora de palavras era a colecionadora de conchas e a colhedora de flores; uma página a tornar-se fértil. “Não tenho o mar nos olhos, mas tenho os olhos no infinito.” Algo pousou em seu peito ensolarado, suplicando para que não acordasse a sombra. “Não tenho nos lábios as palavras; nem a minha alma é a linguagem.” Resumiu-se no zelo esplendoroso de sabê-las inseparáveis de si.

Na desolação que passava ao lado, um convite sugava o nada deposto no que seria a proteção de galhos frenéticos antes de exaurir-se o que imaginara maior.

Uma borboleta amarela vigiava as flores de romã – os frutos amadureciam invariavelmente em dezembro. A cultivadora de frutos, uma impossibilidade realista, talvez existisse para que não deixasse de existir a compaixão. Desapareceu no seio do pomar que a confiscava, desbotando no irrecuperável pendor de quem não configura sementes em qualquer terra.

De dentro da sala os trabalhos do ano anterior tornavam-lhe evidente a inércia involuntária. A forma tridimensional aferia rejeições do passado. Inúteis. Quisera ter agarrado com o silêncio das mãos a paisagem que a despertara, o almejado novo rumo desdenhado ao rigor dos próprios pés.

Que significado submerge do que brota para além do desejo? Transpôs a hostilidade azulada e o amanhecer corriqueiro lhe trouxe do exterior um inescrutável céu, como se a lua abrisse os olhos para iluminar-lhe o coro de nomes que preferia anônimos.

Como se dissipara repentinamente a crua sensação de felicidade que estivera consigo? Sobre símbolos febris recostou o destino de não ser comum sendo habilmente igual à maioria, ainda que para filtrar a mesma vibração ou, de alguma forma, integrar outros horizontes – tão inequívocos quanto era verdadeiro o madrugar despertando o desconhecido – retomando ordens revestidas de extremada bravura.

Assim como não há ferida que resista às cápsulas do que passa, algo inexplicavelmente atraente a retornaria à Flowoers Street. O número não era compatível com quem estivesse só. Nem o andar. Nem o elevador. Nem as faces que a encontraram com aquelas personalidades. Tão ausentes. Todas estranhas e famintas de sal... Todas tão suas sem o serem.

Colheu mais um lírio em cujo perfume tentou adormecer. Depois um girassol. Colecionou insônias na mesma frequência com que vivia sonhos e conchas. Cultivou romãs por mais um tempo. Depois amoras, madressilvas, laranjais. Cuidou e investigou inexprimivelmente marés e nascentes. Depois mais palavras. Depois xícaras de chá. Depois a paz e a linguagem. Pelo resto do tempo: “que tudo possui.”

Do livro Entre as Águas -TT
Foto - lirios -TT