quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sobre uma nobreza duvidosa

Sobre uma nobreza duvidosa

Um par de sandálias tingidas à mão, acompanhado de outro par de sapatos de couro de crocodilo vermelho – comprados numa dessas liquidações, por mero consumismo, ou sucumbência do tédio – na robustez de um fluir que insistia recrudescer num monturo de falácias, abandonaram o peso das caixas e desenharam um losango sobre os lençóis morenos. Quanto pode confessar o que é suprimido?

A mulher era adepta ao Feng Shui. Criativa, quase demente. Fazia arrumações seguidamente, livrando-se das coisas que não usava nem viria a usar. O vestido de seda ficara confuso por um tempo maior, talvez numa ilusória tentativa de manter vivas as coisas imponderáveis – com o tempo são outras as noções do que se deve nutrir – transformou-o num lenço para colorir o seu pescoço de garça. Dos retalhos surgiram quatro ornamentos em forma de mariposa e dois em forma de estrela de Davi. O azul, potencialmente calmo, evitaria agitações – aprendera no portal cromoterápico. O desdém de algumas bijuterias, cujas memórias já não exalavam nenhuma paixão, ganhou o cabaz das doações.

Porque era necessário afogar-se num pequeno oásis, nalgum perfume de engano onde não se confundiria transportou-se para os abstratos. Sem perscrutar, displicentemente exposta, cerrando os olhos, não para impedir sentimentos, mas para depurar tudo com maior concentração e rapidez. Revolveu as folhas compactadas e quase inertes dos pensamentos infalivelmente expressos e acarinhados. O contorno das pálpebras já não é o da menina que lhe singra as portas da alma. Pautas a sabor de erva-doce – a força e a mobilidade dos desejos: “E esse inverno, cruel e necessário, que enrijece a fluidez dos rios e adormece as flores das plantas. Embora sejam perceptíveis os seus brinquedos e verdadeiras as suas dobraduras, não sei o que é o tempo, nem o que posso alcançar sem ele. Diante da inexorável sonolência que não dividirá o cansaço dos meus olhos, do que não piso, tudo é insônia e excesso de voz, química e loucura. Inquebrantável é o gigante que persigo ao largo desse aramado. Enquanto houver um suspiro roçando-me a fronte, enquanto forem enquadráveis os ângulos do absurdo, toda a via será meio falsa, meio falange, meretriz por essência.”


Texto do livro "Entre as Águas"
Fotos: Ipês- by Tere Tavares

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