domingo, 23 de outubro de 2011

O dia em que perdi a cabeça



Tudo quanto aprendi parecia desaparecer. A borboleta que sempre me esperava no mesmo ponto como se posasse para mim, estava seca. O azul das suas asas transportava-se misteriosamente para as minhas roupas. Não consegui divisar mais nada além daquele espaço sem naturezas ou com naturezas que passavam para um assombroso e volátil desconhecido. Meu braço esquerdo tateou algo em que não ousei acreditar e se fundiu nas manchas sufocantemente vermelhas e verdes que ladeavam as margens, enquanto o braço direito dirigia firmemente a pequena deusa de metal.



Pedalei neuroticamente feliz, enquanto me certificava das vertigens gastas que adornavam o ambiente. Não obtive calor nem frio. O ar, exausto com a minha fome por velocidade, se estendia ao comprido das margens. Sem me tocar. Sem proferir absolutamente nada. Como se soubesse mais do que via nos aparatos do possível.
Imitando um ritualista, uma ninfa exterior veio monitorar o meu cérebro entorpecido com suas palavras decepadas: “Sou o desacerto. Talvez um dia comezinho com perfume de rosmarinho. Mensageira dos impulsos de setembro. Em minhas faces de Calíope age uma estrutura que nunca me diz adeus. Sou o amanhã de um livro inconformado que aceita os mais ávidos porquês. O seu não! Perdão, quase esquecia, sou o escorpião dos pareceres. A complexidade do simples, a licença quase sem veias – o descaminho.”

Ela prendera a borboleta e o pó vítreo dos meus azuis entre os dedos.  Não a conservei como era o meu dever. Não queria dever-lhe nada. Foi isso. Evitei desesperadamente a escassez daquela tarde bicolor.

O intervalo que não viveria de razões se apaixonou pela graça que reluzia ocultamente em todas as coisas. O bosque de todos os dias.  Minha incauta metamorfose beijou o irreconhecível.

No difuso túnel que deu início à minha não existência, comecei a suspeitar da humildade das certezas de antes. A definição dúbia das manchas tão vermelhas e tão portas, a veemência da bolha tão única e irremediavelmente verde provavam o meu candeeiro rarefeito, cuja concupiscência sequer se dava conta da lamuriante escolha que não fiz. O sol sussurrava alentos ao meu evanescente brilho porque não havia evidências de tornar-me maior ou mais do que somente minúsculo.

Do livro "Entre as Águas- 2011
Fotos:  Ariel Tavares
Piloto : Jeronimo Tavares