domingo, 28 de agosto de 2011

Mescla




A felicidade de *|* tinha um arsenal de folhas para desonerar as luzes partidas dentro de si. Sua planta preferida, embora preferisse todas, não menos que os dias, era @ - a araucária – igualmente fértil e despretensiosa.


A @ costumava chamar *|* quando quisesse dar-lhe frutos ou aromas. *|* agradecia afagando-a com palavras doces só para contornar-lhe o viço contundentemente. A @ também conversava com #, irmã menor de *|*.

Numa tarde, sentindo as horas dobrarem-se níveas por trás das touças, *|* e # saíram juntas seguidas de perto por duas orquídeas e um ramo de alecrim. O perfume das orquídeas é parecido com o dos jasmins, comentou *|*. Ah! Não troco nada pelo perfume das rosas disse #.

Próximos ao cimo das pedras dois lírios silvestres, nítidos e exuberantes, pareciam esperá-las. @ percebeu do seu ápice frondoso, que os {} aparentemente imaculados espreitavam *|* e # de longe. Elas admiravam a brancura dos {} como se neles depositassem silentes fios de carícias.

Separam-se ao longo do caminho. Agora *|* afastada de # dava-se mais habilidosamente à diversidade natural que a circundava. Aproximou-se de outro bosque onde gostava de perder-se amiúde. Colhendo os segredos desmesurados das folharias, as já conhecidas pela botânica ou não. A Impatiens walleriana nascia espontaneamente nos arredores - era formidável observar-lhe a explosão das cápsulas de sementes a qualquer pequeno toque ou movimento. Do outro lado via-se o tronco da jabuticabeira, repleto de bagas negras e translúcidas – a seiva medicinal e doce. Cada emanação daquela irrestrita natureza tinha para *|* uma correlação indubitável com a vida.

O incômodo sossego dos {} ficara distante diferentemente de seu interesse pelas descobertas. Atravessou uma pequena clareira para alcançar [-] o alcaçuz. Acercou-se mais e encontrou também <:> a melissa. <:> poderia muito bem ter assistido seu nascimento, fazer parte da família, assim como o [-] lembrava-lhe sua # e os {} o homem amado.

Fechou os lábios para abrir um evanescente sorriso. A modorra tropical caia cobiçosa sobre cada mínima extensão de vida. A memória de *|* permitiu-lhe não esquecer o amor que a deixara há pouco tempo sem dar causas à inocência – preferira # e seus vestidos pouco sinceros ou sérios. “Com uma irmã assim quem quer fundar alguma família?” Ponderou *|* agarrando-se a um cipó que transformara num balanço. Inebriada e refletida numa dança cumpria um ritual esvoaçante como a falbalá que a cobria da cintura para baixo.

Pegou um maço de {}. Colocou-os entre os braços, decidida a levá-los consigo. Tropeçou num montículo de salgueirinha que lhe arranhou a delicadeza da tez. Lembrou-se do chá de <:> que lhe acalmara tantas vezes o sono indômito. Os {} escorregaram de seus braços e caíram no córrego, foram-se, lépidos, apesar da correnteza preguiçosa. *|* olhou para os lados. Lamentou como se chorasse – os lírios haviam ficado quase marrons como a fina lâmina de lama do fundo do córrego. *|* também sujara a falbalá, também se enlameara. Despiu-se para lavá-la na fonte límpida logo adiante. Suas pernas desnudas assemelhavam-se às longas hastes dos bambus.

Seu bioma era diverso, plural, quase desconhecido. Alcançou o [-] e colheu alguns ramos. As amoras verdes estavam amolecidas, prontas para deixar o pé. “Frutificam apesar do emaranhado de espinhos dos seus galhos, hei de ter algo delas no meu modo de existir.” Pensou *|*.

Se sim ou não, após sua passagem o bosque encharcou-se de suficiências mais significativas e gráceis. Vieram pássaros e borboletas. *|* já não recordava # nem o homem amado... recrudescia a cada passo no caminho de volta. A @ estava à sua espera.
Sem enganos ou reservas *|* cedeu à fertilidade das pulsões, recostou-se sobre a relva olente que desenhava lençóis dourados para acender-lhe a cútis cor de neve, o cabelo revolto e longo. *|* gostava do esboço suntuoso do vento, da sinuosidade rumorosa enraizando-lhe o ventre, o colo... quantas vezes fora sua única malga de carinho. Viu os pássaros em pares abrandando os voos. Os cabelos esparramados feito asas de purpurina multicor.

Uma revoada a mais e um espasmo, e sua febre dúbia já era rubor. Os {} brancos e perfumados trouxeram-lhe, como se sonhasse, uma raiz de [-] e uma polposa romã. *|* consentiu sabores, línguas e pedúnculos. Lírios e alcaçuz. Melissas e orquídeas. Bulbos e remoinhos de papiros d’África. A raiva da irmã. Juncos e flores inconspícuas. Vetiver e sementes. O homem que fugira sem a falbalá que sujara de lama ao correr atrás dos {}. Que já não amava. Que já não derramava em si nenhum segundo. Franziu os olhos e os fixou na @. Sua secreta e parca resina era água de patchuli ... um credo franzino, uma entrega – de *|* prorrompida em hastes felinas e seivas esguias.


A partir do original publicado no Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=5142


Tela da autora.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Me ninas dos Olhos



Me ninas dos olhos

“A nitidez é uma conveniente distribuição de luz e sombra.” Goethe

Resolveu conversar com as pupilas. Não havia como isentar-se dos reflexos – apropriar-se é perder.

Voltou para a rua. Sentiu, secretamente, uma indizível sensação de alívio ao perceber a possibilidade de atravessar grande parte do percurso sem permitir atormentar-se com sentimentos comuns. Multidões de visões perdidas. Afinal, quem assumiria sem o risco do erro, a licença para aferir com exatidão, ou total isenção, o condenável?

Investigou com toda a suavidade possível, detendo-se nos semblantes, tentando não infringi-los, como se adentrasse em sulcos intermináveis – usava materiais conhecidos e desconhecidos para percorrê-los, acreditando ter desenvolvido, ainda que rudimentarmente, um método eficaz de observação. Não se curvaria diante de nada imóvel, opaco. Altares da alma – assim chamava os olhares – como afugentar aquelas perseguições vivazes?

De algumas pupilas retirou distâncias, sorrisos plásticos, todas as fundições do arco-íris.  De outras, frases inteiras que mais pareciam um enorme luau de estampas confusas e céu.

Era possível ver um imponderável manto de cores e interpretar o que nem imaginava compreender. De modo que lia os olhares difusamente e, retratados na sua incredulidade interior, também seus corações.

Não havia outra aparência que não fosse a que definitivamente se destacava da estranha profundidade de todas elas, pela simples razão de não haver razão para serem diferentes do que realmente eram.

Havia um par, pulsantemente castanho e singular, que conseguiu prendê-lo, talvez, por toda vida: o que vagava dizendo-lhe o que via sem nada revelar, e que o fez absorver-lhe a voz com selvagem interesse: “Sou a dos sentidos de cristal, a afortunada sofredora que tem à sua frente o rol das futilidades repletas, a que nada promete, exceto que haverá encanto enquanto durar o mistério”.

(Desenho da autora)