sábado, 22 de janeiro de 2011

Queda de Barreira

Queda de barreira

Desta vez não haveria premeditações. No seu caso o hábito desafiaria o monge. Algo como sofrer sem recordar a causa do sofrimento. Não olharia para trás. Anseios e sonhos não permaneceriam adiados por motivos banais. Sorrir falsamente ou proferir amenidades para satisfazer quem quer que fosse também restaria abolido. Se procurasse um ombro amigo não seria para depositar nenhum desespero insolúvel. A todos que amava, mesmo não obtendo nada em troca, continuaria a dar o mesmo amor, sem objetar modificar ninguém. Sua cognição é que deveria se deslocar. A felicidade é, antes de tudo, um ato de coragem. Ofereceria somente o que de mais augusto o habitasse.
Cobrou tempo aos contadores do tempo. A nebulosidade era constante. Durante vários dias de um verão inexplicavelmente frio e transbordante subiu a estrada recortada do mapa com a neblina embaralhando-lhe as têmporas. O jornal fora esquecido como todo o resto. Nem livros. Nem almíscar ou amuletos. Nem senhas ou senhoras. O perfeccionista caótico também morrera sem vasculhar o que deixara de seu na intrusão dos significados.

Vestígios entrecortados de um grande corredor sumamente rico de plantas confidenciavam-lhe janelas com cantos de pássaros irreconhecíveis; nuvens claras margeavam a limpidez do céu. Estrelas longínquas e montanhas intrépidas se agigantavam ou diminuíam conforme a amplitude do olhar – coisas infalivelmente perdidas, em desuso. Um pequeno paraíso filtrado pela mata atlântica, a Ilha Feia era de uma beleza sufocante. Faria tudo para alcançá-la. Enamorou-se dela, primeiramente de longe, imaginando-lhe os lugares, as espécies e a paz replicados do entorno e do interior, ainda inexplorados por ele. A inusitada porção de universo deveria esperar mais algum tempo pelo infatigável viajante. Chovia muito. Voltava a chover. A casa o abrigou como se soubesse tudo a seu respeito. A mobília mal distribuída o irritava ...Mas não ligou. Foi para o quarto diminuto. De paredes brancas e devassadamente nuas. Gostou das paredes nuas porque o incitavam ainda mais a viver apenas com o indispensável. Desceu acompanhado pela curiosidade enquanto saboreava um café, como se dialogasse com um desconhecido casual, tão absorto no que fazia ou tencionava fazer que mal ouviu os próprios monossílabos. Um lixo. A falta de afinidades ferroava-o como labaredas de fogo.

O subsolo não era exatamente o que o incomodava. A verdade ali ocultada não era suficiente para que prosseguisse. Algo que o comprometesse era imediatamente posto de lado. Do outro lado havia escuridão. Lampejos indesejáveis instauravam-se no monturo que em nada lembrava o vazio. Não existem sozinhos, nem a sombra nem a luz. O cérebro decodificou duas figuras humanas de aspecto ameaçadoramente mutável. Como um rascunho dentro de outro rascunho. Uma espécie de ilusão de ótica.

O mundo físico em si não está subdividido em objetos, e é visível da forma como a percepção o organiza. A imagem que a mente abstrai do que vê é volúvel e quase nunca tem como único fundamento a realidade. A informação instilada nos olhos converge com a que está cumulada na memória. O cérebro usa trinta áreas distintas para processar a visão – conforme a marcha dos astros, as variáveis cromáticas, a profundidade, a distância ou a perspectiva dos contornos. Juntos, visão e cérebro, simplificam as imagens, tornando-as mais compreensíveis do que efetivamente aparentam, muito próximas da exatidão. Essa simplificação, permite apreensões velozes, mesmo que dúbias, da realidade externa, de onde se originam as ilusões de ótica. De forma que o cigarro e o copo suspensos por aqueles espectros, de costas um para o outro, eram, além de inexatos, completamente abstratos.

Espantou-se com quanto se pode indagar da subjetividade. Retornou ao pequeno cômodo que lhe serviria para passar o resto da noite. Fechou a janela deixando apenas uma pequena abertura para a renovação do ar.

Enquanto isso montanhas deixavam de existir, exaustas. A mixórdia urbana vinha à tona ilustrando insuportavelmente cada recorrência das orgias climáticas, sua origem, causa e efeito. O fim do mundo. Todas as linhas de pensamento paravam e iniciavam nas catástrofes por opção, obrigação, conveniência ou ciência. “Eppur si muove”.

Nem tudo é propositalmente abandonado. Reorganizou as inquietações. O sol reapareceu com sua multidão de contrastes, turbilhões de almas e quinquilharias para dispensar. Nenhum pedido de socorro foi ouvido. Seu lado são os dois lados. Sublimadamente diferentes.

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