quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Tempo de Lírios


E nem era primavera. Ajustou as meias e os cordões dos sapatos. O tom flamingo se espelhava em cada partícula da paisagem. Dialogando com as abstrações, o instinto persistente da consciência desprovido de qualquer disfarce. As formas brancas, curvas, de centros amarelos e perfumes inolvidáveis permaneciam num emudecido encontro com tudo. A intolerante pergunta era só mais um pássaro entre outros dez mil pássaros pousados em suas vestes. Porque tudo é encontro? A partir dali não haveria brisa.

Reconheceu de imediato o desassossego entrelaçado das árvores. Chegara, finalmente. E era como se também tivessem chegado o ardor pulsante do que não se extinguiria.

Quem sabe do regresso, quem pode dizer sobre o que parte e acorda da sombra, da saga vulgar dos impulsos, das substâncias e rupturas floridas da ilusão que, a cada irromper do amanhã, desprezam algo de si mesmas? Desabrochar é um vício necessário. Do espírito.

Haveria de se perder tantas vezes quantas fossem sublimadas as suas forças. Tinha a impressão de levar consigo mais do que lhe era possível.

Soprando de um lugar ignorado um retalho igualmente irreconhecível debruçava-se sobre a nudez da claridade – a segregação de tudo quanto era conhecido e tênue. “Talvez não fosse eu” disse sobriamente.

Tudo parecia se materializar, a despeito das folhas caídas e dos anseios impacientes.

No jardim, no instante lento e perplexo do luar, nem o pai, nem o irmão, nem os filhos. Só uma crédula brancura. A que, irredutivelmente, colhia na sinuosidade do próprio rosto.

Editado a partir do original publicado em:
http://historiaspossiveis.wordpress.com/2010/02/07/tempo-de-lirios/

Foto - Lírios -TT

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Homem que brilhava


Andou para um lado e para outro. Seu entusiasmo não sabia se diria adeus à liberdade ou reconhecia onde estava. Ali o esperava o mar, aquele mar que podia contemplar por intermináveis momentos, e sempre mostraria algo diverso: uma concha, uma profundidade mais transparente, o rastro de uma nuvem, o rumo de outra corrente e as instantâneas ondulações espumando na margem. O som que ouvia assemelhava-se ao terno perfume de um presente recebido há muito tempo, bem distante.
Cada sensação era um tesouro inestimável, de uma euforia irreflexiva, como se pertencesse a um todo que imediatamente se desintegrasse. Onde acabaria alguém de alma demasiado sensível? “Aqui tens o coração de um homem”.

Não podia parar. Era para si mesmo um reflexo luminoso desprovido de qualquer significado. Olhava-se como a gaivota olha o cardume ou como o cardume olha o pássaro. Era um sondar repleto, de luz profunda, uma recompensa inolvidável do prazer de quem vê além do simples esforço das pupilas. Era-lhe irrefragável o sorriso, quase inocente, como quem soubesse ter guardados muitos mais para trazer aos lábios. Seguiu olhando ininterruptamente. Algo brilhava na areia limpa. A água morna molhava seus pés. Não recordava onde havia deixado a última lembrança, tampouco queria encontrá-la. Novamente percebeu o brilho na areia. Inclinou-se e recolheu o que lhe parecia ser um metal precioso. Já contava com algo. Fez uma pequena pausa. Em sua multidão de silêncios a voz do mar era o próprio corpo do mar que o domava e o refazia. Estendeu as mãos contra o sol. O brilho sumiu por entre os dedos. Consumiram-se os elos das coisas secretas.

Uma suave ironia marcou sua fronte persistente. Sorriu com a mesma bondade de antes. O mar agora era verde, brilhantemente verde e solitário. Com a cabeça inclinada caminhou como sabem caminhar os que não perdem jamais o que tanto se custa a conseguir ou não tem qualquer preocupação com as vis necessidades humanas – alimento, descanso ou amor.

Como se entrelaçado em incomensuráveis variantes e obviedades dirigiu-se ao indefinível com a doçura de quem só podia murmurar: “Aqui tens uma estrela mais intensa do que a minha”.
Tela: Rocha e Mar-TT